A arte de ser Carmen da Silva
Variadas
Publicado em 24/01/2020

A ousada escritora e jornalista rio-grandina que foi uma das precursoras do feminismo no Brasil

 

Sabe quem é Carmen da Silva? Se você é de Rio Grande e tem o mínimo interesse pela relevância de artistas daqui e suas obras já deve ter ouvido falar sobre ela. Com um pouco de empenho e sorte, já leu algo da produção literária ou jornalística dela. Se você é mulher, de qualquer parte do país, deveria conhecê-la. Carmen da Silva nasceu em 31 de dezembro de 1919, em Rio Grande; viveu no Brasil, no Uruguai e na Argentina; e entre o tanto que fez e nos legou, foi escritora premiada e a principal responsável por botar o feminismo em pauta na imprensa brasileira dos anos 1960, sendo a primeira mulher a assinar coluna na Revista Claudia – A arte de ser mulher, em que publicou por mais de duas décadas. Construiu e consolidou um espaço de voz forte de onde respondia cartas de leitoras do Brasil inteiro e discutia, com sensibilidade e sem pudor, temas tabu como sexo, aborto e divórcio. Foi divulgadora potente do movimento feminista brasileiro, influenciava mulheres a serem protagonistas das próprias vidas; isso em tempos de exceção. 

No final de dezembro completam-se cem anos do nascimento de Carmen. Ao longo de 2019, diversas ações comemorativas vêm sendo realizadas na cidade, promovidas pela Biblioteca Rio-Grandense e pela FURG, com apoio da Secretaria de Município da Cultura. Em 29 de abril, ocorreu a roda de conversa “Carmen da Silva colunista: os primeiros passos da militância feminista no Brasil”, na livraria Vanguarda do Partage. Na mesma data, que marcou o 34º aniversário de morte da escritora, foi protocolado junto ao gabinete do prefeito o requerimento que solicita dar o nome de Carmen da Silva a um logradouro local. Para novembro, está sendo preparado pela FURG um evento que reunirá estudiosos da obra de Carmen, com apresentações de trabalho, exposições e leituras de textos, na Biblioteca Rio-Grandense e no Partage Shopping. Outras atividades de homenagem devem acontecer ainda no início do ano que vem. 

 

 

Uma das principais idealizadoras da agenda alusiva ao centenário é a professora Nubia Hanciau, que há anos dedica-se ao projeto “Carmen da Silva, uma rio-grandina precursora do feminismo brasileiro”, do Programa de Pós-graduação em Letras da FURG, e ao site Carmen da Silva, o repositório digital da obra da artista. Nubia Hanciau conversou com o furg.br sobre a importância da artista no contexto da universidade e da cidade do Rio Grande.

 

Como começou sua história com a figura e a obra de Carmen da Silva?

 

Apaixonei-me por essa autora rio-grandina a partir de 1963, aos 15 anos, tempo em que vivia ainda em Santa Maria, minha cidade natal. Na verdade, no tempo de seus primeiros artigos, que revelavam uma mulher corajosa, resistente, à frente de seu tempo. Vim viver e estudar em Rio Grande em 1967. Fiquei então sabendo que essa criatura maravilhosa e ousada, que eu gostava tanto de ler, nascera em Rio Grande, em 31 de dezembro de 1919, na casa ainda hoje existente, situada à Rua Conselheiro Pinto Lima, nº 51. Filha de Celina Daniel da Silva e Pio Ângelo da Silva, conhecido médico na cidade, diplomado em Filadélfia, pela Universidade da Pensilvânia, e cujo avô, também Dr. Pio, dá nome a um dos principais logradouros rio-grandinos, situado à frente de nossa Catedral São Pedro. Na FURG, quando professora na pós-graduação, estava certa de que era preciso recuperar  sua memória em sua terra natal e os valores que Carmen passou em seus artigos e que, mais tarde, lhe renderam dois livros de ensaios: A arte de ser mulher: um guia para o seu comportamento (1966) e O homem e a mulher no mundo moderno (1969), publicados pela editora Civilização Brasileira. E ainda, uma década depois de sua morte, em 1994, sob a organização de Laura Taves Civita e seleção de texto de Julia Tavares, a coletânea de artigos O melhor de Carmen da Silva, publicados ao longo de quase 22 anos em que ela foi articulista na revista Claudia.

 

Que frutos, em termos de trabalhos de ensino, pesquisa e extensão, esse encontro entre vocês gerou?

A FURG desde 2001 tem inscrito no seu Programa de Pós-graduação em Letras o projeto acadêmico pioneiro, e talvez o único, a respeito da escritora, intitulado "Carmen da Silva, uma rio-grandina precursora do feminismo brasileiro". O primeiro passo dessa pesquisa sob minha responsabilidade a respeito de uma das mais notáveis feministas brasileiras do século XX constituiu-se em levantamento/recenseamento de sua obra no âmbito da Iniciação Científica CNPq/PIBIC, obtendo o primeiro lugar por dois anos consecutivos com esse projeto de pesquisa, cuja base encontra-se na crítica literária feminista, jornalística e na nova história, que, ao se entrecruzarem, defendem o comum propósito de dar voz à figura des/centrada da mulher. Nossas análises, respaldadas na crítica literária feminista (brasileira, francesa e canadense), revelaram: marginalizada no âmbito da sociedade tradicional e oprimida por normas de comportamento arraigadas a valores androcêntricos, a mulher surge na ficção de Carmen da Silva na posição de sujeito. No âmbito desse projeto orientei várias pesquisas, entre as quais a primeira dissertação de mestrado do PPG-Letras sobre a escritora, defendida por Maria Helena Fuão, intitulada "Uma leitura da ficção e da história na escrita de Setiembre, de Carmen da Silva", em julho de 2004. 

Somam-se a essa primeira pesquisa, mais três dissertações desenvolvidas na FURG, além de dezenas de trabalhos acadêmicos, livros, artigos em revistas e jornais. As investigações desenvolvidas no âmbito da universidade, e a herança de parte do espólio documental, legado pela senhora Maria Pia Barreto, irmã de Carmen da Silva, estão na origem da transferência/inserção em suporte tecnológico digital, disponíveis para consultas no que se pode configurar como o Acervo Virtual de Carmen da Silva, hoje imortalizado na web, facilitando ampla circulação. O site www.carmendasilva.com.br é considerado um dos veios para os estudos desenvolvidos na FURG e também fora da nossa instituição.

Depois de contemplar o estudo das obras ficcionais nessas dissertações de mestrado, ampliou-se o estudo do corpus da autora rio-grandina, visando não apenas promover sua obra enquanto jornalista, mas em sua totalidade, favorecendo assim seu reconhecimento e identificação com a terra onde nasceu. Se o Rio Grande de Carmen da Silva não é mais aquele do cheiro de cebola, "estreito demais...", descrito em Histórias híbridas, a realidade deixa claro que a cidade vive ainda em busca de conquistas para assegurar seu lugar histórico de destaque no Rio Grande do Sul. Nesta medida é, pois, necessário resgatar também o patrimônio cultural, simbólico, intelectual e artístico dos valores desta terra.

 

Porque Carmen da Silva é relevante para Rio Grande?

 

Se pouco avançamos nesse quase meio século no campo das relações afetivas e familiares, ainda hoje pautadas pela submissão das mulheres fundada nas mais sutis relações de poder, notadamente no que concerne à eliminação da violência dentro e fora do lar, também não fomos muito longe quanto aos direitos sobre o próprio corpo, à questão da reprodução, em relação ao direito de decidir, à maternidade, o que pressupõe a descriminalização do aborto. O posicionamento de Carmen da Silva e, nessa esteira, o de mulheres engajadas, implica o ultrapassar e o alargamento do feminismo em direção a um sentimento mais social. A voz de Carmen reverbera ainda por ela mesma, mas fala também pelas mulheres de hoje, na verdade são multivozes que incorporam o eu de narrativas, antigas e atuais.

E se é da natureza das coisas serem esquecidas, retomando a jornalista Olívia Fraga, se o ritmo ditado pelo mundo digital acelerou a amnésia coletiva e fez solapar até mesmo o passado recente, fazendo-nos ignorar muito rápido o tempo do preto-e-branco, aquilo que não é matéria de se registrar nos livros de história, isso não basta como justificativa para o desconhecimento de Carmen da Silva em seu lugar de origem e sua ausência na conversa das feministas brasileiras do século 21. Neste ano do centenário de seu nascimento, as iniciativas apresentadas pretendem lembrá-la como a pensadora digna de respeito que foi.

Mais dissertações sobre Carmen da Silva produzidas no contexto do PPG-Letras da FURG

Carmen da Silva, caderno nº 1. Rastros, memórias, histórias: recortes e recordações de uma vida, de Alexandre Pinto da Silva (2015).

Carmen da Silva, leitora de Simone de Beauvoir, de Marina Cardoso Regufe (2014).

Carmen da Silva, nos caminhos do autobiografismo de uma "mulheróloga", de Kelley Baptista Duarte (2005).

Uma leitura da ficção e da história na escrita de Setiembre, de Carmen da Silva, de Maria Helena Rodrigues Fuão (2004). 

 

 

Acessoria de Imprensa/Universidade Federal do Rio Grande

 

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